Como dizia Ferreira Gullar: A arte existe porque a vida não basta.
A vida não basta, não comporta, não completa, não lota e nem transborda. Não cabe numa vida tudo aquilo que me preenche, ou preencheria se a vida me bastasse. Mas ela não me basta, ela não suporta, ela não me suporta e eu, por vezes, também, a ela, não suporto e nem desejo suportar.
Não suporto a vida que se mostra num domingo insosso sem café da manhã na mesa ou comida no prato. Não suporto a vida de um silêncio profundo do lado de fora e uma barulheira infinitamente enorme, gritando, transtornando e engolindo, sem fim, o lado de dentro.
Não suporto um domingo de respiração ofegante, de barriga roncando, de cabeça doendo e de neuras, noias, preocupações, receios e medos.
Um domingo de um único pãozinho bisnaguinha com um resto de geleia que já está há meses dentro de uma geladeira que precisa ser desligada à noite pra não congelar as garrafas de água e a meia jarra de suco de pozinho que tem dentro dela.
Um domingo pra constatar que a casa é boa, a natureza é linda, que é bom o fato de que choveram algumas gotas nessa noite e que a temperatura está maravilhosa, mas que o meu templo, o meu ser, o meu interior está um caco, está um caos, está um lixo, está em nó.
Não suporto um domingo morno, sem sal, sem açúcar, sem tempero, sem presença, sem gente, sem vida e por que não dizer, um domingo sem mim?
Mas eu preciso estar aqui, eu preciso viver, mesmo que eu não queira ou não esteja suportando a vida e não esteja suportando estar aqui. E ainda ousam me dizer que eu cocrio a minha vida. Ousam dizer que sou eu a responsável pela vida que levo. Pois então esse domingo insosso, é ainda um domingo de revelações, de me perceber extremamente ignorante e burra. Já que fui eu que o fiz assim, que merda que fiz! Que merda que sou! Mas não, eu sei que não sou!
"Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu..."
E ainda assim a gente precisa estar aqui. Estar na vida. Pra ver tudo, pra viver tudo, pra sentir tudo. E sentir muito. Eu sinto muito, eu sinto tudo e, ao mesmo tempo não sinto nada, não vejo nada, não quero nada. Eu não suporto ver a vida passar e quando estou assim, tão enfurecida, tão endurecida, tão cheia de raiva, eu suporto menos ainda ver a vida tentando fazer com que eu a admire me oferecendo esse cheiro de terra molhada, esse sons de pássaros cantando, essa sensação do balançar da rede e essa temperatura fresca.
A vida, por vezes ingrata. Por vezes, ingrata sou eu. E sim! Sou! Estou! E nem sempre com disposição de sair desse estado de cansaço, loucura, indignação e ingratidão. Talvez por medo de voltar pra ele logo em breve. Tenho mais medo do retorno dele do que fé na chegada dos momentos de paz e calmaria. Quando eles virão mesmo? Ah, num futuro.
Nesse domingo salobra, meu entorno cheira a paz, meu interno exala caos. Vivo os dias esperando que eles passem, e que passem logo, e que a próxima onda boa chegue, mas não me culpe por não fazê-la chegar logo. Não me acuse se não sei o caminho. Às vezes eu paro de tentar descobrir ou até de tentar andar. Viver é complexo e tem quem diga que viver é simples. Digam o que quiserem! Viver, pra mim, é do-lo-ro-so. Tem quem diga que eu sou maravilhosa. Maravilhosa pra que? Maravilhosa pra quem? É. Eu sou maravilhosa mesmo, mas pra que serve mesmo tamanha maravilhosidade? Aonde ela me ajuda em todas as noites que coloco a minha cabeça no travesseiro e choro por não entender patavinas, bulhufas do que sinto e do que me consome?
Aonde ela me ajuda na hora em que vejo a fome, o racismo, a misoginia, a homofobia, a gordofobia, o capacitismo, as palavras tortas e o descaso diários no mundo inteiro? Mun-do-in-tei-ro!
E os imbecis nem sabem que são imbecis e seguem distribuindo e espalhando vossas imbecilidades num grau tão grande que minha maravilhosidade míngua só de saber que eles existem e que, a qualquer momento, eu corro o risco de que mais uma imbecilidade chegue e me surpreenda.
Se a possibilidade de se manter alegre fosse simples, te garanto que eu seria a primeira na fila da alegria. Nunca foi só querer. E se eu cocrio essa merda, quem é o outro que cocria comigo, porque nós estamos precisando ter uma conversa séria!
Pode não parecer, posso não dizer, por mais que eu pense e ache que eu digo a todo momento, eu não dou conta! Eu preciso de... Mas nem sei do que preciso. Preciso de você que me lê, de quem me responde, quem me enxerga e quem não me ignora. Preciso de quem luta, pra me fazer acreditar na luta; de quem vive, pra me fazer acreditar na vida; de quem ama, pra me manter acreditando no amor. Eu acredito no amor, mas preciso de uma bolha que me encha dele e que me diga que não estou sonhando demais, esperando demais, sendo utópica demais.
Num domingo insosso eu posso botar roupa pra lavar, varrer a casa, tirar toda a poeira dos móveis ou chorar. E eu choro sozinha. E eu nem sei pelo que choro ou que dor é essa, que medo é esse, que falta é essa que a falta me faz. E ainda insistem em me dizer que eu me acostume a ser sozinha. Ignorantes! Já foram 42 anos, mermão! Se eu não me acostumei até hoje... me acostumar seria entregar os pontos, desistir do que me move, abandonar o barco do amor.
Num domingo insosso não há o que digam, não há o que façam, não há o que eu queira fazer. Talvez um milagre, uma revolução, uma mudança escandalosamente grande, um meteoro... Talvez um colo. Só um bom e verdadeiro colo. Um abraço daqueles que dura pra depois do desconforto de se manter tanto tempo abraçado.
A proximidade não foi capaz de arrancar, a distância não foi capaz de arrancar, a ausência não foi capaz de arrancar, a doença não foi capaz de arrancar, a natureza, o silêncio, o barulho, o daime ou a oração, não foram capazes, nem de me arrancar de mim, nem de me apaziguar em mim.
Mas a arte? A arte sim. Ela me entorpece, me inebria, me engana, me esconde, me camufla, me faz esquecer que existe um mundo aqui dentro. Me apoia nos domingos insossos e nos dias inúteis. A arte me faz acreditar que talvez, num futuro breve, sempre futuro, sempre breve, mas sempre longínquo, alguma coisa possa me bastar. Essa coisa, com toda a certeza, não é a vida. Porque a vida, com o uso das palavras de quem sabe o que diz: a vida não basta! Ela nunca me bastou. E eu duvido seriamente de que ela um dia me baste!
Tenho essa imagem guardada há muitos anos. O texto é de Alexandre Reis, mas eu ainda não sei quem ele é.
Esse texto também foi comentado no Podcast Cá com meus botões, promovido por mim e pela amiga Luiza Alencastro. Para ouvir, clique aqui!
Eu sempre penso que tenho que dizer que essa é a minha carta de notícias. Nem sempre boas notícias, mas sempre o que grita dentro de mim. E entre eu escrever e publicar a de hoje, muito mais coisas e muito maiores, gritaram ainda mais alto.
Te convido a considerar a possibilidade de apoiar a minha escrita se tornando um inscrito pagante das minhas cartinhas e colaborando pra certeza que tenho de que essas palavras que escrevo ainda encontrarão seus pares e farão alguém tão incompreendido quanto eu se sentir, de alguma maneira, percebendo que tem espaço pra encaixar seu caos no mundo real.